Sobre morte mesmo

Alice Name-Bomtempo
2 min readNov 7, 2021

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Cuba, 5 de maio de 2021

Nunca imaginei que fosse chorar por Paulo Gustavo. No lado pessoal, não era parte de seu público. No profissional, justamente por esse ter sido bem mais extenso, jamais o vi como uma pessoa em risco. Seu poder e influência, cuja magnitude muitas vezes testemunhei, lhe outorgavam uma condição aparentemente intocável. Me esqueci, evidentemente, que as imagens por mais fortes que sejam, são, no fim, construídas sobre pilares de areia.

Li em um livro acadêmico sobre narrativa que “Contrariamente ao mundo, que não tem começo nem fim, o relato se ordena segundo um determinismo rigoroso”. Me encantei por essa imagem infinita e indeterminável do mundo. A finitude e seu sentido é, também, uma organização narrativa nossa. Acho bonito sermos tão pequenos.

Em aula, na semana passada, o professor perguntou: Sabe por que estamos aqui? E ele mesmo respondeu: “Porque vamos todos morrer. E não queremos que as imagens que carregamos conosco morram junto.” Acho que é muito isso que me move, no lado pessoal e no profissional. Tanto como motivação artística quanto de consolo diante de mortes queridas: a imagem que carregamos dos nossos mortos é o que os mantém vivos. Quando uma pessoa morre, uma das coisas que mais me preocupa é: ela vai ser lembrada?

Já acreditei (e ainda acredito) muito que já que vamos todos morrer, o que nos resta é fortalecer essas imagens. Mas, ao mesmo tempo, que trágico é ser uma imagem. Virtual. Imóvel. Finita, diferentemente do mundo. Acredito, também, que a imagem é no fim um consolo. O melhor que podemos fazer diante da perda material sobre a qual não temos controle algum.

Nesse sentido, eu quero mais é que ela se foda, como bem coloca a protagonista de The Disappearance of My Mother (um filme também de filho sobre mãe… que coisa.). Me parece que pouco adianta o rasgo do que já foi, o foda é o que é. Nem Paulo Gustavo, que será lembrado em um nível histórico, escapou de virar uma imagem prematuramente.

Penso que sempre que nos aproximamos da morte, nos aproximamos da vida. É ao ver as imagens dos mortos que me lembro de que estou viva, me movo, não acabei, não ainda. Aí sinto aquele impulso de, em respeito a eles, aproveitar esse movimento ao máximo antes que ele congele. Mas sinto também medo e tristeza por ser brasileira. Nunca imaginei que fosse chorar por Paulo Gustavo em Cuba. Nunca imaginei que a imagem de seu fim seria uma marca na minha identidade.

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