Sobre massas disformes, Marília Mendonça e Paulo Gustavo

Alice Name-Bomtempo
3 min readNov 7, 2021

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Cuba, 7 de novembro de 2021

Tenho escrito muito pouco apenas por escrever, porque estou escrevendo e fazendo outras coisas. Ao mesmo tempo em que sinto falta e acho que é importante escrever apenas por prazer e expressão, também acho que é importante manter as coisas dentro do infinito da minha cabeça em vez de limitá-las ao fixo das palavras, mesmo até que elas se percam dentro de mim, desaparecendo antes de encontrar a saída.

Por isso, comecei muitos textos mentais que nunca viraram letras. Por isso também não sei muito bem sobre o que é esse aqui que, diferente dos outros, conseguiu emergir em um arquivo de word.

Talvez eu queira falar sobre a Marília Mendonça, sobre o sentimento deslocado que é asimilar a morte de um artística simbólico do seu país fora dele.

A minha noção de “casa” é abstrata e incorpórea, o que a permite tomar forma em diferentes quartos, ruas, cidades, países. Eu não associo “lar” ou “identidade” a um lugar específico no qual eu sinta que me originei, que me acolhe apenas por existirmos. Acho que existe, sim, uma espécie de mancha na qual eu me encontro, uma mancha entre Rio e Minas, mas que existe apenas na indefinição, porque não me encontro totalmente nem no Rio, nem em Minas. De forma similar a como eu não me encontro totalmente na grande mancha do Brasil, e tão pouco me encontro fora dela. Acho que “se encontrar” é necessariamente um trajeto inconclusivo impossível de se traçar com caneta em um mapa.

Isso posto, eu tive a certeza absoluta de que não estava em casa quando Paulo Gustavo e Marília Mendonça morreram. Porque eu sabia que essas interrupções tinham um impacto enorme na mancha da qual eu venho, impacto que na mancha na qual eu estou é invisível e silencioso. É necessário contar a dimensão dessas pessoas em uma explicação impossível de se compreender para os que não são brasileiros.

A minha sorte é que há, sim, muitos brasileiros aqui, pros quais não tive que explicar nada. O momento de cantarmos juntos passionalmente Infiel e 50 Reais, sob o olhar perplexo dos de outra nacionalidade, foi um momento em que me senti em casa.

Essa massa disforme que eu chamo de casa não é composta por espaços, e sim, por elementos, ações, sons, rotinas, pessoas, músicas e imagens. Mas isso não muda a referência que eu tenho da grande mancha da qual venho, nem a saudade que eu sinto dela.

Me dei conta de que nunca tinha passado tanto tempo fora do Brasil. Depois percebi que sim, já tinha. Até que concluí que não, não tinha: não estou fora do Brasil há 7 meses. Estou fora do Brasil há quase 2 anos, desde o começo da pandemia. Quando saí fisicamente há 7 meses atrás, eu saí de um Rio de Janeiro que eu já não vivia, do qual não pude me despedir, e que não sei quem será quando eu voltar. Também não sei para qual Brasil vou voltar, um Brasil sem Paulo Gustavo nem Marília Mendonça.

A marca de suas obras fica registrada nos seus respectivos vídeos e sons, e também nas pessoas que os acessam. Mas eles mesmos deixam de ser pessoas e viram imagem.

É claro que eu gosto de imagens, respeito imagens, acredito em imagens. Mas também acho cruelmente trágico que, talvez, no fim das contas, imagens sejam o nosso destino final. É bonito que fiquemos, de alguma maneira. Mas ficamos é na cabeça dos outros. Talvez mesmo em vida a gente só exista mesmo é nos demais. Talvez por isso que casa para mim não é um lugar, e sim uma sensação. Talvez essa massa disforme se reconfigure constantemente sem nunca chegar à sua imagem final, sempre insatisfeita e mutante.

Se é para virar uma imagem que ela seja assim, um pouco menos trágica.

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