“Mas a menina é do tipo que gosta de pôr o dedo na ferida, não na ferida alheia, mas naquela que ela traz no peito. Na ferida que herdou de Mãe (…)”

Alice Name-Bomtempo
3 min readMar 8, 2022

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de 08 de março de 2022

Hoje acordei com tempo pra ler três páginas de Becos da Memória da Conceição Evaristo antes de começar a trabalhar. Dei de cara com essa frase. Tirei uma foto e postei nos stories do Instagram. Por conta da diagramação, saiu no enquadre também o comecinho da frase seguinte "Na ferida que herdou de Mãe (…)". Postei e fui fazer outras coisas, mas fiquei pensando nela.

Me loguei e desloguei do Instagram mais vezes do que gostaria, e numa dessas fui lembrada que hoje é dia da mulher (eu esqueço absolutamente todas as datas "comemorativas", tirando Natal, ano novo, e uns poucos aniversários). Os posts que li me fizeram voltar a pensar nessa frase do livro.

Ela também logo me lembrou de uma frase da Elena Ferrante que eu gosto muito: "escrever é como girar a faca na ferida". Nesse cruzamento de trechos/posts/datas/inquietações obsessivas que rondam a minha cabeça, penso que existe uma diferença muito grande entre por o dedo e girar a faca na sua ferida, e fazê-lo na ferida do outro. No segundo caso, penso que o mínimo que deve haver nessa ação é o consentimento. Palavra que atravessa tanto o "ser mulher" (seja lá o que isso for).

Mas como o consentimento se dá quando estamos contando algo? Se estamos falando de um acordo com autores, personagens e pesquisa do que se narra, consigo visualizar. Mas a partir do momento em que colocamos uma narração no mundo, ainda que ela parta do toque em uma ferida muito nossa, não estaremos sempre lançando a faca meio às cegas, podendo acertá-la em quem quer que se aproxime?

Ainda que eu goste muito da frase da Ferrante, me incomoda muito a constante associação que se faz entre arte e sofrimento. Será impossível escrever sem faca, sem ferida, sem sangue? Explorar-se em uma linha diferente daquela em que corre a dor? Não questiono o essencial de narrar os traumas, mas me pergunto se no fim não somos nós que acabamos sendo narradas por eles, e somente por eles. É possível ultrapassar essa condição? Eu acredito que sim, mas não tenho muita certeza de como.

Lembro de um texto maravilhoso da Ursula K. Le Guin em que ela faz uma comparação entre uma abordagem narrativa focada exclusivamente na noção de conflito (e, consequentemente, segundo ela, mais violenta) em relação a uma que pense em outras mecânicas narrativas, e nas histórias não como um confronto, mas como uma bolsa onde guardamos coisas que gostamos.

"Diria inclusive que a forma natural, própria ou justa de um livro deveria ser a de um saco, de uma bolsa. Um livro contém palavras. As palavras contém coisas. Levam sentido. Um livro é um pequeno kit, contem coisas que se relacionam de um modo particular e muito poderoso entre si e conosco."

"(…) todos escutamos o suficiente sobre os paus, as lanças, as espadas, as coisas que servem para apunhalar, bater, e golpear, coisas largas e duras, mas não escutamos muito sobre a coisa para colocar coisas dentro, o recipiente para a coisa que se guarda. Essa é uma nova história. (…)"

Tudo que narramos é dentro do mundo e a partir de nós mesmas. Portanto, é impossível não ser afetada por ele e ignorar as feridas nossas e as herdadas por Mãe. O que acredito sim ser possível é que este não seja o nosso único marcador de identidade, nem a nossa única ferramenta narrativa. Que a gente possa escrever com faca, pedra, dedo, bolsa e tudo o mais que encontrarmos por aí. Que toquemos em nossa ferida quando quisermos, se quisermos.

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